Entrevista Jornal "Expresso"


Versão digitalizada da entrevista.








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Nasci no Pombalinho, a 4 de novembro de 1934. O meu pai era ferroviário; depois de reformado decidiu ser agricultor e veio a morrer com quase 101 anos. Também era do Pombalinho, enquanto a minha mãe, que era doméstica, nasceu na Azóia. Só tiveram um filho. A minha mãe teve problemas de aleitamento e acabei por ser amamentado por uma vizinha que tivera uma filha um mês antes — a minha irmã colaça, Maria Adelaide. Nasci em casa, com a assistência da parteira da terra.


Onde aprendeu as primeiras letras?
Por conta própria (ou seja, com os meus pais), na Guia, perto de Monte Real, onde o meu pai esteve colocado. Acompanhei-o sempre para onde a CP o mandava — ou para onde ele queria e conseguia ir por minha causa. O primeiro sítio foi Monte Novo de Palma, perto de Alcácer do Sal, onde apanhei sezões, ou paludismo, por causa dos arrozais não tratados. Quando entrei na escola, tinha um amigo que me acompanhava no caminho, o Fernando. Íamos ataviados de maneira diferente: eu, calçado e de calções de tecido confortável; ele, descalço e calções de cotim. Mesmo no inverno, quando a geada formava nas poças de água um vidrinho muito fino de gelo; eu atravessava as poças com botins e ele descalço — e ríamos os dois à brava! O professor usava chinó e tinha uma varinha de bambu, com a qual nunca me bateu.

Mas ao Fernando…
… bateu! Fiquei muito incomodado e ficou-me na memória.

Onde fez o liceu?
Em sítios diferentes: Leiria, Figueira da Foz, Coimbra. O meu pai comprou-me uma viola, que aprendi a tocar também por conta própria. No 6º e 7º anos toquei com o António Portugal, já um exímio guitarrista, e fiz parte do seu primeiro grupo. Foram anos que me ligaram à “geração de ouro”. A primeira vez que o Luiz Goes cantou em público foi connosco, na festa do meu 7º ano.

Chegou a acompanhar o Zeca Afonso?
Toquei com ele, mas pouco; nessa altura era um Zeca tradicional e não cheguei a acompanhar a sua faceta de intervenção.

Porque escolheu a carreira do Exército?
Tencionava ir para a Faculdade de Ciências e seguir Química. Ao mesmo tempo estava aberto o concurso para a Escola do Exército, como se chamava, e concorri. Um elemento motivador foi a leitura de vários livros, no centro da Mocidade Portuguesa do liceu, sobre as proezas dos portugueses nas guerras de África. Aquela exaltação entusiasmou-me.

Como surgiu a primeira nomeação para a guerra colonial?
Com os acontecimentos de fevereiro de 61 em Angola bem vivos, em agosto houve um convite e voluntariei-me. Só em Angola soube das origens da revolta. Fui deslocado para São Salvador do Congo (agora M’Banza Congo), no Norte. Comandei uma bateria de artilharia, a primeira que foi para o mato. Tínhamos instalações precaríssimas, que melhorámos consideravelmente com adobes das sanzalas que haviam sido bombardeadas com napalm.

Sabia que fora napalm?
O que é que pode queimar os adobes de uma casa, transformando-os praticamente em tijolo? E havia as marcas do fogo.

Foi em Angola que conheceu o general Spínola?
Fui contemporâneo em São Salvador do então tenente-coronel Spínola, que comandava o grupo de Cavalaria 345.

Ele já usava monóculo?
Sim, não me recordo de o ver sem ele. Só o não levaria nas operações em que participava. E devo dizer que era senhor do seu nariz.

Em quantas comissões participou?
Em três. A primeira foi em Luanda e São Salvador. A segunda foi igualmente em Angola: Nova Lisboa (atual Huambo), também excelente do ponto de vista profissional. Não havia guerra e pus a Escola Militar a funcionar de novo. E em 1970 fui insuspeitadamente mobilizado para a Guiné. Regressei para frequentar o curso complementar do Estado-Maior, no qual tive como companheiros o Vítor Alves (meu queridíssimo amigo) e o Sanches Osório. Um dos professores foi o Lemos Pires, que considero o melhor da sua geração e que teve um azar tremendo na ida para Timor. Chegado da Guiné, consolidei a interrogação que já trazia da primeira comissão: o que é que estamos aqui a fazer? O que é uma interrogação dramática para um indivíduo com a minha formação. Uma segunda ideia clara era: Índia nunca mais! Não havia possibilidade de resistência face a um mastodonte como a Índia, que bastava soprar e o pessoal ia cair ao mar.

Como entrou na conspiração com os capitães?
Findo o curso fui promovido a tenente-coronel. No início de 1974 fui sendo aliciado pelo Osório e pelo Vítor para o Movimento dos Capitães e convidaram-me para ir a uma reunião nos Olivais. Como eu e o Melo Antunes criticámos bastante o documento lido nessa reunião, a “mesa” incumbiu-nos de o reescrever, em conjunto com o autor (o José Maria Azevedo) e o Sousa e Castro. Seguiram-se umas três reuniões desse grupo em minha casa. Da fusão do meu texto com o do Melo Antunes nasceu o conhecido ‘documento de Cascais’, que, no meu entender (e não só), é o marco de viragem do aspeto corporativo para o político. Fiz ainda parte de um grupo chamado de “político”, que participou na elaboração do programa do Movimento das Forças Armadas. Esteve previsto que o principal órgão de poder saído do golpe se chamasse diretório militar ou comité. Eram expressões associáveis à Revolução Francesa ou à Soviética e sugeri que se mudasse para Junta de Salvação Nacional, para dramatizar e congregar vontades. Outra coisa que mudou foi o local para onde deviam ser enviados os então Presidentes da República e do Conselho. O Vítor disse-me que estava pensada a ida para os Açores. Objetei, sugerindo a Madeira, até porque nos Açores havia a base americana, o que poderia provocar alguma confusão. Se as decisões foram, ou não, seguimento das minhas sugestões, não sei nem me importa.

Onde estava no 25 de Abril?
Em boa verdade, estava a dormir. Sabia que ia haver, não sabia que era a 25 — nem queria saber! Era uma questão de segurança.

Não teve pena de não ter sabido antes?
Nenhuma! Foi intencional. Dei o meu contributo mas havia uma compartimentação. Estava a dormir e telefonaram-me do Estado-Maior do Exército (EME), onde estava colocado. Às 6 da manhã saí à paisana de minha casa em direção a Santa Apolónia com mais três camaradas. Quando cheguei, fui para a 4ª repartição, onde estavam o Osório, o Vítor Alves e o Franco Charais, com os narizes enfiados num rádio. Fui um dos últimos a sair do EME e mandei fechar o portão. Depois fui a casa, tomei o meu banho e fui para o quartel da Pontinha. Na sala de operações, havia um mapa das estradas (do Automóvel Clube de Portugal), outro de Lisboa e um terceiro do Porto, e alfinetes de cores a marcar as posições das várias forças. “Está? Porreiro, pá!”, dizia o Otelo ao telefone, esticando o polegar (terá sido um precursor…). Estas reações joviais do Otelo eram um achado naquela ocasião. Se alguém levasse a coisa muito a sério era capaz de ficar bastante incomodado. Ainda assisti à parte final da discussão do programa, em que não intervim. À última hora, Spínola forçou a exclusão ou alteração de alguns pontos; o general Costa Gomes também sugeriu alguns, como a continuação da DGS em África, em que tinha razão. Depois fomos em cortejo para a televisão, onde a Junta foi apresentada ao país. E o Otelo ‘fechou a loja’.

Quando começou a exercer funções na administração da RTP?
No dia 28 de abril recebi uma guia de marcha para a televisão. Fomos nomeados três para a comissão administrativa: um do Exército (eu), outro da Marinha (o Conceição Silva, que estava na reserva e era advogado), e outro da Força Aérea (o major João Ferreira, que nunca mais vi). Fomos os três fardados para a RTP, onde nos apresentámos a 29, com as remunerações de origem. O presidente era o marinheiro, por ser o mais antigo. Fiz uma reunião com os críticos de TV de vários jornais, um dos quais Mário Castrim, e dei-lhes a incumbência de, entre eles, definirem as linhas gerais de uma programação que achassem adequada para que a RTP pudesse ficar melhor. Fiquei à espera de ‘fumo branco’.


Já não se cruzou com o Ramiro Valadão, o anterior presidente da RTP?
Não, sentei-me foi na cadeira e à secretária dele... Houve um inquérito, porque o diretor dos serviços administrativos tinha uma loja de artigos eletrodomésticos que tinha negócios com a RTP. Acabámos por o demitir e chamar o Maia Cadete, um dos fundadores do PS, que tentou revirar aquilo, no sentido de correr connosco e deitar a mão à direção da RTP, mas não lhe correu de feição e fomos nós que corremos com ele. Passámos na RTP alguns calafrios. No meio de toda a turbulência interna, preparou-se a cobertura do primeiro 1º de Maio comemorado livremente.

Entretanto, caiu o I Governo Provisório e foi convidado para o segundo.
Eu estava em casa, tocou o telefone e era o inevitável Vítor a puxar por mim... Depois falou o coronel Vasco Gonçalves, indigitado para primeiro-ministro. Convidaram-me para ministro da Administração Interna, o que aceitei no momento.

Não pôs condições?
Não. Tomei posse e não me tremeu a mão a assinar o auto. Sabe quando é que tremeu? Muito mais tarde, no V Governo Constitucional. Veja como é a vida... Recordo-me perfeitamente, o raio da mão... A principal prioridade era organizar as eleições e cumprir o prazo de um ano fixado no programa do MFA. Havia ainda que legislar sobre os pilares da democracia, que são o direito de associação, de reunião e de criação de partidos políticos.

Coube-lhe nomear os novos governadores civis.
Nomeei o tenente-coronel Nascimento Infante como uma espécie de ‘embaixador itinerante’, para percorrer os diversos distritos e falar com as forças vivas. Tinha de me trazer três nomes, para que eu chamasse cada um para uma conversa e escolher o mais adequado. Em Leiria, foram-me apontados o Vasco da Gama Fernandes, o Rocha e Silva e um terceiro. Fiz um papel a sugerir o Rocha e Silva, mas o Spínola, passe a grosseria da expressão, engravidava facilmente pelos ouvidos... Alguém lhe disse que Rocha e Silva era um pavor, um vigarista, de modo que não o quis. Leiria ficou sem governador civil até 28 de setembro. Foi o único distrito... Nomeei-o depois.

Como foram as suas relações com Spínola?
Eu tratava-o por ”meu general” e ele por “senhor ministro”.

Não o tratava por Presidente?
Não. Mas não era por acinte ou qualquer coisa do género. Era por hábito e formação. Também tratava assim o general Costa Gomes. O nosso relacionamento foi bom mas algo atribulado; Spínola respeitava quem não tivesse medo dele.

Não houve resistências à realização de eleições?
Havia resistências mesmo na área militar, mas houve uma mobilização geral por todo o país. Sabe como é que o recenseamento foi pago? Com o dinheiro que eu tinha no cofre, da comissão de extinção da PIDE/DGS... Havia um saco azul no gabinete, que vinha do antecedente e ficou um bocado mais cheio quando recebeu uma verba vinda da comissão de extinção. A utilização desse dinheiro era discricionária: tanto podia ir para a minha conta bancária como para fins mais decentes.

E não foi para a sua conta?
Não foi de certeza absoluta. Há uma coisa que levo comigo para a tumba: não roubei ninguém, nem me vendi. Esta é uma afirmação perentória!

Pediu a demissão de ministro na noite do golpe de 11 de Março de 1975.
Nessa noite, estava numa reunião em Belém, quando tivemos notícia de que havia uma ‘assembleia do MFA’ no Instituto de Defesa Nacional, para a qual éramos ‘convocados’ com urgência. E fomos. Ao fundo, havia até gente armada, muito exaltada. Um dos mais efusivos era o coronel Varela Gomes, que numa das intervenções me colocou como visado, tal como um oficial da Marinha que tinha trabalhado comigo e que mais tarde vim a encontrar ligado ao PCP. Alguém disse que as eleições eram indiscutíveis; houve manifestações afirmativas e fiz questão de que tal constasse no comunicado final. Disse então ao Vítor Alves que a minha missão estava cumprida. Demiti-me perante o Costa Gomes e o Vasco Gonçalves.

Foi quem montou a máquina para as primeiras eleições. Em que partido votou?
Votei no PS. Na minha vida, votei PS e PSD, fiel à social-democracia.

Qual foi o seu papel no “documento dos nove”?
O primeiro exemplar foi assinado por nove membros do Conselho da Revolução, a começar pelo seu autor, Melo Antunes. O segundo exemplar começaria com a minha assinatura mas dei precedência ao Garcia dos Santos, por ser mais antigo. No grupo dos chamados moderados havia a ideia de que quem ‘saltasse’ primeiro, perdia. De maneira que a nossa preocupação foi a da contenção. O Jaime Neves era um homem um bocado precipitado e saudoso da guerra, com conceções um tanto conservadoras. Estava à frente dos Comandos, uma unidade essencial na contagem das espingardas e depois na ação. Promovi uma reunião num apartamento em Campo de Ourique, que se encheu com umas vinte pessoas, todos militares. Estavam o Eanes e o “Jaiminho”, que tinha a ideia de levar os Comandos além da linha de Rio Maior, o que era um disparate. Ele pensava que o Norte era a salvação. Nós achávamos que era preciso conter esse impulso do Jaime Neves e Eanes prometeu-lhe que as coisas iam ficar clarificadas dentro de poucos dias. O que Eanes e nós pretendíamos era que não houvesse a movimentação do Jaime Neves — e isso foi conseguido.

A seguir ao 25 de Novembro, o que fez?
Em dezembro, o Presidente Costa Gomes convidou-me para provedor de Justiça. Fui a Copenhaga e Paris, para, em dois dias, ver como a instituição ali funcionava.


Foi o primeiro provedor de Justiça, mas por pouco tempo.
Só cinco ou seis meses. Procurei instalações, que encontrei numa moradia na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa. Defini a estrutura e funcionamento do serviço e comecei a convidar pessoas. Tive total autonomia e tipifiquei o papel de uma possível intervenção do provedor: vencer a burocracia sem perder o rigor. Procurei olhar para a lei com sentido crítico, não de forma dogmática, usando o possível bom senso e sentido de equidade. Por isso é que não fui buscar para provedor adjunto nem um advogado nem um magistrado, mas um docente: Luís Silveira. Em julho passei o testemunho ao meu amigo José Magalhães Godinho.

Em 1976 voltou a ser ministro, do I Governo Constitucional, de Mário Soares.
Uma das coisas que me levaram a aceitar foram as primeiras eleições autárquicas — que dentro de pouco tempo fazem 40 anos. Nesse Governo, qualquer nomeação para a função pública tinha de ter a minha assinatura e a do ministro das Finanças. A certa altura apareceu a proposta de nomear Palma Inácio para diretor no Ministério do Trabalho. Percebi que iria dar um sururu danado e opus-me. Mário Soares ficou um bocadinho aborrecido, mas não me disse nada. O Palma é que ficou aborrecido a sério. No funeral do Melo Antunes veio ter comigo e propôs-me que reatássemos relações. De facto, não as tínhamos. E lá demos um bacalhau.

Em 1976 houve as primeiras eleições presidenciais. Em quem votou?
Eanes, sem dúvida nenhuma. Na altura o meu nome foi falado. Que eu saiba, foi lançado pelo Pezarat Correia, numa reunião no MNE. E eu disse-lhes que, se era para elemento de estudo, fizessem o favor, quanto ao resto... Até que, numa reunião do grupo militar dos chamados moderados, em São Julião da Barra, decidiram que, entre Eanes e eu, seria ele. Achei muito bem; não estava interessado, nem tinha condições, e seria bater com a cabeça no patamar de Peter...

Em 1978, nomearam-no para a administração da Hidroelétrica de Cahora Bassa (HCB).
No III Governo, Nobre da Costa pediu-me para ir falar com ele a São Bento. Tínhamos sido colegas no I Governo de Soares, explicou-me o que se passava em Cahora Bassa e convidou-me. O presidente da empresa estava impedido de ir a Moçambique — não formalmente, mas não lhe davam visto de entrada...


Uma situação bizarra!
E nitidamente política. António Martins tinha uma certa culpa, porque tivera algumas atitudes bruscas para com os moçambicanos em vários escalões, a que se juntou o “complexo de ex-colonizado”. Veio a sair de presidente e eu saí poucos meses depois.

Entretanto pertenceu a um outro Governo, o V, de Maria de Lourdes Pintasilgo. Sempre na Administração Interna.
Estava no Songo quando me enviaram mais que um fax a convidar-me. Recusei, até que recebi um a dizer: “Imprescindível que aceites.” Assinava o Vítor Alves. Quando percebi que ia estar lá a Maria de Lourdes e a coletividade a que eu pertencia (o grupinho dos moderados), considerei que valores mais altos se levantavam e aceitei. Fui tratar, mais uma vez, de eleições: legislativas e autárquicas.

Já conhecia a engenheira Pintasilgo, claro.
Fomos colegas nos II e III Governos Provisórios. Isto não devia dizer-se, mas em Conselhos de Ministros trocávamos às vezes bilhetinhos, com versos ou piadas. Havia reuniões muito maçudas…

Seguiu-se a construtora Ilídio Monteiro.
Estive lá dois anos. Foi a minha única aventura no privado, muito gira, por acaso. Que teve como episódio principal a ida frequente à Líbia, onde tinha obras relativamente grandes.

Em 1983 foi criada a Alta Autoridade Contra a Corrupção, de que foi o primeiro e único titular. Quem o convidou?
Almeida Santos. Éramos muito amigos, quer das guitarradas coimbrãs quer das áreas governativas. Lembro-me de tocar com ele para o Ted Kennedy, irmão do falecido Presidente Kennedy, numa casa de fados que foi fechada ao público nessa noite. Álvaro Cunhal, que também era ministro, assistiu. A certa altura, o Almeida Santos disse-me: “Ó Manel, vamos a isto?” Ele agarrou na guitarra do guitarrista e eu na viola do violista e guitarrámos os dois, com ele a cantar. Fados tradicionais.


Cunhal também gostou?
Esteve perfeitamente bem. Também era muito cordato no Conselho de Ministros — onde, com frequência, desenhava, em especial camponeses, e tenho muita pena de não ter um exemplar. Como alto-comissário Contra a Corrupção, eu tinha uma independência absoluta, só apresentava um relatório anual à Assembleia. O primeiro-ministro, Cavaco Silva, tinha muito receio — e eu também — das intervenções da Alta Autoridade.

Você tinha receio?
Tinha. Razão pela qual vim a propor a sua extinção.

Era um órgão com muitos poderes? Não controlado?
Não era controlado. Era a única entidade que tinha acesso direto às contas bancárias de toda a gente. Os bancos mandavam-me os extratos de conta e eu tinha acesso a tudo, dentro das regras do sigilo bancário. Mas nos dez anos que aquilo durou, ninguém viu cá fora nenhum fac-símile de extratos de conta, mesmo com o cabeçalho apagado, com setinhas a dizer que este dinheiro saiu daqui e foi para acolá… Nunca houve quebras de sigilo e fugas de informação por parte da Alta Autoridade. Nunca aconteceu como agora, com o que se apresenta como vindo lamentavelmente da área judicial.

A Alta Autoridade tinha mais poderes que a Procuradoria?
Em matéria de acesso às contas bancárias até tinha. Esses e outros acessos diretos davam também um grande poder institucional e mesmo individual, bom para quem tivesse ambições políticas. Quem exercesse as funções de alto-comissário tinha um poder potencial ou efetivo muito grande.

Podia ser uma espécie de monstro?
Chame-lhe o que quiser.

Se caísse em más mãos...
É isso que estou a dizer. Podia cair, por exemplo, em jogos partidários e de partilha de funções. Foi por isso que pedi a extinção do cargo. No dia 17 de maio de 1993 terminei as minhas funções, com o gesto muito simples de subir o elevador do Tribunal de Contas para entregar a Sousa Franco o relatório e contas até à véspera. Quando desci, já não era alto-comissário.

Foi um órgão inútil?
Não foi inútil. Alguns casos tiveram seguimento na área judicial, através do Ministério Público, a quem fiz cerca de 250 comunicações para efeitos penais. Além disso, enviei para diversas entidades mais de 350 memorandos de natureza administrativa e mais de 30 propostas. Não sei quantas obtiveram penalizações nos tribunais, nem quantas foram arquivadas. Lembro-me de mais do que uma acusação significativa, que levaram a julgamento e à condenação.

Pode dar um exemplo?
Não. Não quero dar, prefiro não o fazer. Outra coisa que recordo foram os dois suicídios, uma vez que as averiguações da Alta Autoridade terão estado nas respetivas motivações, e não me deram satisfação nenhuma. Coloquei como áreas prioritárias as autarquias, a banca — que era nacionalizada — e as alfândegas.

Acha que contribuiu para “limpar a casa”?
Limpar não lhe garanto. Mas quem pensasse ir por determinados caminhos, acabava por ter de pensar duas vezes. Ninguém sabia por onde “eu” andava, ou o que estava, ou não, a ver. É a história do crocodilo na outra margem…

Todo esse volume de informação foi entregue à Procuradoria?
Não, para algum desconforto do procurador-geral.

Desconforto porquê?
Porque gostaria de o ter, e não teve. Foram cerca de dois milhões de folhas A4, todas digitalizadas, que estão na Torre do Tombo.

Tinha más relações com o procurador-geral, Cunha Rodrigues?
Não. Tínhamos até um bom relacionamento pessoal e mesmo familiar. Institucionalmente é que o ambiente geral no Ministério Público, e em vários casos individuais, era muito adverso à Alta Autoridade.


O Ministério Público era muito cioso do seu poder?
Talvez cioso demais, e muito corporativo. Estou a falar de 1983 e dos nove anos seguintes, e receio que não tenha havido grande alteração. A despropósito: gostava de manifestar a minha admiração pelo Alves dos Reis.


O célebre burlão e falsificador do princípio do século XX?
Claro. Tem tido alguns imitadores e vejo que está a ser vencido em qualidade, o que deploro muito.







Depois da Alta Autoridade, voltou a Cahora Bassa.

De 1993 a 1999, em segunda “encarnação”, como presidente. Para a pôr a funcionar de novo, ao fim de 14 anos de paralisia devido à guerra, o que foi atingido em agosto de 1998. Criei por aquilo uma paixão enorme. Foi onde senti maior plenitude de mim próprio, um misto de realização, orgulho e prazer.


E, pelo contrário, o que lhe custou mais?

Está também relacionado com Cahora Bassa: o “Diário de Notícias”, em junho de 1998.


O que aconteceu, que ainda hoje o traz amargurado?

Ainda hoje... Foram três dias consecutivos, 16, 17 e 18. Quase todos os jornais tinham recebido os mesmos faxes, com uma denúncia anónima. A metade superior da primeira página do jornal dizia “Costa Braz acusado de fuga ao fisco” e acrescentava verdades, meias verdades e mentiras.


Processou o jornal?

Sim, processei. Em 2005, o Tribunal da Relação, em acórdão sobre recurso que os réus apresentaram sobre outro acórdão, condenou o diretor e os dois jornalistas intervenientes a sete meses de prisão, suspensa por um ano, e o jornal a uma indemnização cível. Saí de Cahora Bassa em 1999, ia fazer 65 anos, fui abordado para outras coisas mas não aceitei nada porque tinha essa situação pendente. É completamente machucador! Não esqueço nem perdoo! Depois dediquei-me aos deficientes, tendo sido presidente do Conselho Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência. Sem remuneração.


No meio disso, em 1985 teve uma aventura para Presidente da República.

A certa altura houve a formação do PRD e o próprio Eanes deu-me um toque nesse sentido. Criou-se um grupo de apoiantes diretos, até que o Melo Antunes me disse que o PCP não apoiava, acontecendo que era o respaldo necessário para a candidatura. Além do PRD, também tinha franjas do PS e do próprio PSD a apoiar-me, mas a partir daí as coisas ficaram arrumadas. O general Eanes disse-me: “Acompanho a decisão que tomares” — e não tenho dúvidas de que o faria. Na Presidência, redigiu-se então um comunicado a anunciar a retirada da “minha disponibilidade”, que era um eufemismo levado do diabo... Na segunda volta votei Soares.


Sentiu que estava a ser empurrado para se candidatar a Belém?

Estava a ser puxado, e a entrar num meio que não gosto, o da intriga política... Mas não há política sem intriga, diga-se de passagem. Lá dizia o Maquiavel há 500 anos.


Soares foi um bom Presidente?

Penso que foi melhor Presidente do que primeiro-ministro, e fez aquilo que é esperado de um político. Mau é quando se diz que não se é político e não se faz outra coisa senão política!



Nas eleições seguintes apoiou Jorge Sampaio?

Sim, e dez anos depois Cavaco Silva. E lamento muito uma parte substancial do segundo mandato.


Então apoiou sempre os vencedores: Eanes, Soares (na segunda volta), Sampaio, Cavaco. Marcelo também?

Marcelo não! Votei em Sampaio da Nóvoa, mas estou satisfeito com Marcelo. Precisamos de ter confiança no Presidente. É um homem com uma grande inteligência, com um lado de brincalhotice que, pelos vistos, lhe vem de nascença e temperamento. Com António Costa também estou satisfeito; é muito hábil e é pena que os seus apoios não sejam de uma maioria parlamentar de um Partido Verdadeiramente Social Democrata (PVSD, parodiando uma sigla divertida de há um bom par de anos a propósito do PS). Considero que as conceções sociais-democratas são as preferíveis. E lamento muito que o Governo do meu país seja chamado de geringonça. Há demasiada gente que achou graça à graça do dr. Pulido Valente e ao soundbite do dr. Portas, e a pensar que lhe acham graça se repetir a graça. É a degenerescência da respeitabilidade das instituições. Estamos muito mal! Veja: os políticos são corruptos, os ministros são gatunos, o Governo é uma geringonça e um Presidente foi insultado. Há qualquer coisa que funciona mal, e isso paga-se muito caro. A “Europa” não deixará que haja ditaduras militares mas, como se vê noutros casos, vai permitindo que haja ditaduras civis. A nossa História mostra que, lamentavelmente, só andamos bem a toque de caixa, para utilizar uma terminologia militar. Ou então chamamos os ingleses para arrumar a casa, o que aconteceu demasiadas vezes depois de D. João I...


A 25 de Abril, era tenente-coronel. Reformou-se como coronel.

Fui ultrapassado duas vezes nas promoções. Não reclamei, também pelas funções que tinha. Não ponho em causa os méritos e valor absoluto de cada um, mas houve manifestamente ação administrativa de chefias militares agrestes relativamente aos abrilistas. Repare no que aconteceu ao Salgueiro Maia.


Sentiu-se prejudicado na carreira militar pelo facto de ter desempenhado cargos políticos?

Penso que sim. E pelo facto de ser abrilista. Mas o saldo acabou por ser positivo. Para muitos da minha corporação, éramos um tanto sans-culottes ou menosprezados, particularmente com o desbragamento de 1975. E por aquilo que já Camões referia na última palavra dos “Lusíadas”, que é o que há mais...

…inveja?
E uma certa mesquinhez.



*com Mariana Rodrigues
Artigo publicado na edição do Expresso de 19 de Novembro de 2016. 










Versão impressa da entrevista.